sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Sobre latidos e crises

Desde que os meninos nasceram nosso cãozinho Pierre adotou um jeito bem peculiar de manifestar sua preocupação quando um deles chora: ele late o latido mais agudo e estridente que conseguir na intenção de chamar nossa atenção para que façamos com que o sofrimento da criança acabe. É bem irritante, confesso, além de nada efetivo já que quando isso acontece primeiro nossa atenção se volta a calar o latido para só então conseguirmos raciocinar quanto ao choro.

Outro assunto.

Há algum tempo venho colecionando angústias quando leio notícias de tragédias. Não sei dizer em que momento da minha vida isso começou, mas de uns tempos pra cá tem doído muito mais do que eu estava acostumada. Pode ser porque hoje o acesso a informação é maior, pode ter sido a maternidade, pode ter sido só um amadurecimento pessoal. Pouco importa. O fato é que hoje meu nível de empatia é bem maior do que anos atrás.

Os últimos dias estão especialmente mais pesados. Teve o pequeno refugiado morto na praia, depois os índios Guarani-Kaiowá mortos por fazendeiros e agora o menino Cristian morto pela polícia. E isso foi só o que chegou para mim. Há quem opte por não ver, não querer saber. Eu entendo o raciocínio dessas pessoas, e secretamente até os invejo. Já que não podem ajudar o que adiantaria ficar sofrendo?

Só que eu cheguei num ponto em que não consigo mais não ver, não consigo mais me fechar numa bolha e tocar a vida. E isso me consome. Especialmente porque não acredito mais que posso salvar o mundo pelo facebook, foi-se o tempo em que me bastava compartilhar uma notícia indignante com uma hashtag de impacto e imediatamente ir ler sobre outro assunto achando que fiz minha parte. Não fiz porra nenhuma. Não mereço essa paz de espírito.

Sempre que digo publicamente que me incomoda o fato de eu não me sentir fazendo diferença no mundo as pessoas arregalam os olhos e, com a melhor intenção do mundo, tentam me convencer de que, sim, eu fiz alguma coisa. Na maioria das vezes me lembram que meus filhos são o que de melhor eu já fiz. Balanço a cabeça pra cima e pra baixo e desvio o olhar. Não era bem disso que eu estava falando.

Não há o que negar quanto aos meus meninos serem a minha melhor parte, são mesmo. Mas eles não são eu. Eles são seres totalmente capazes de seguirem os seus caminhos em busca de algo que lhes faça sentido. Mas achar que ter colocado no mundo dois seres com capacidade de realizar algo que eu queria ser capaz de realizar e não estou conseguindo seria suficiente para que eu me sinta melhor é, além de egoísta, pouco pra mim. Colocar neles todas as minhas expectativas frustradas é um fardo pesado demais para se dar para alguém carregar. É uma insatisfação muito minha para que eu saia por aí distribuindo porções para alguém pelo simples fato desse alguém ter saído do meu útero. Eu libero vocês, filhos.

É claro que a maternidade mudou a minha vida de tal forma que hoje quase não reconheço aquela pessoa que fui. Só que eu não quero passar meus dias me vendo nos meus filhos, preparando eles para viverem uma vida que eu perdi enquanto os preparava para viver. Isso além de ser injusto comigo, é injusto também com eles.

Então tá, não quero transferir para os meus filhos uma necessidade que é minha. Ok, quanto a isso estamos conversados. Mas, e agora?


E aí é que eu entro num looping infinito. Me dói, tenho urgência em salvar o mundo, mas tô aqui sentada na frente de um computador sendo teórica. Estou agindo feito meu cachorro diante do choro da criança. Latindo o mais alto e estridente possível sem efetivamente fazer nada. E ainda usando a energia de vocês que, na ânsia de aliviar meu sofrimento, vão tentar me consolar.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Me ajuda aqui?

Lembro que minha mãe contava orgulhosa como eu fui uma criança que não deu trabalho. Um bebê bonzinho, que dormia a noite inteira, que quase não chorava. Cresci entre quatro irmãos, aprendendo no dia a dia a ser o mais independente possível, até por uma questão de logística numa família grande. Meus pais trabalhavam bastante e a gente foi ensinado desde cedo a se virar, a pedir ajuda somente quando não tivesse mais jeito. Nem sei se isso foi um ensinamento mesmo, é possível que eu que tenha entendido tudo errado. O fato é que em algum momento da minha vida eu entendi que não deveria incomodar, que pedir ajuda era ser fraca e que cada um deve se virar como pode. Enfim, cresci vendo a vida desse ponto de vista. Alguém se atreve a julgar meus pais? Jamais. Pessoas independentes são o que todos nós almejamos ser. Alguém discordaria disso? Só buscavam para os seus filhos o que de melhor poderia existir. 

Cresci me virando, não pedindo ajuda pra quase nada, um orgulho. E assim foi também com os meus irmãos. 

Depois de uma certa idade, acredito que essa busca por não atrapalhar os outros se transformou em algo parecido com o sentimento de não ser merecedor da preocupação alheia. Não era justo fazer alguém se preocupar com um problema que é só meu. E é aí que a coisa pega. O não ser merecedor.

As consequências são várias, e certamente vou voltar a falar disso, mas a pior que consigo ver é que agindo assim eu promovo um distanciamento natural das pessoas. Porque quem não pede ajuda, não recebe. E quanto mais a gente vive sem apoio, mais tem dificuldade em pedir. Porque pode segurar sozinha. Porque não quer incomodar. Porque não é merecedora de cuidado. Se torna um círculo vicioso: você se vira e dá conta de tudo, com isso conclui que é autossuficiente e pede cada vez menos ajuda. E cada vez mais se isola com uma carga pesadíssima pra carregar.




Eu demorei tempo demais pra descobrir que é num momento de aperto que a gente descobre pessoas disponíveis e com potencial de se tornar bons amigos. Que os laços de uma amizade não se estreitam magicamente em uma tarde agradável passeando no parque. Mas estar disponível quando alguém está em dificuldade tem um poder incrível. Que ligar pedindo uma mão quando a coisa aperta, também. As pessoas tendem a ser solidárias, empáticas, humanas, quando alguém está em uma situação de necessidade. Porque, afinal, é uma troca. Oferecer uma ajuda é quase mais reconfortante do que receber uma ajuda. É uma relação retroalimentada que tem fim em si mesma. 

Mas aí vem a vida moderna e nos incentiva a viver sem pedir ajuda. Ela dá um valor monetário para o que poderia ser um favor. Pagamos uma babá pra podermos ter um jantar romântico num sábado a noite, enquanto poderíamos pedir pra um parente que sempre se mostra disponível ficar com os meninos. Só que não queremos incomodar. Levamos pra terapia algo que poderia ser resolvido numa conversa olho no olho com um amigo que saiba oferecer empatia. Mas não podemos atrapalhar. Compramos tudo pronto pro aniversário dos filhos, enquanto poderíamos chamar umas amigas pra ajudar a enrolar os brigadeiros, exatamente como foram as nossas festinhas de aniversário. Só que não queremos perturbar as pessoas. E os laços vão ficando frágeis. As relações, frias. Sem trocas, sem cuidados, sem favores. 

Eu estou me esforçando no sentido de recuperar relações que nunca chegaram a existir. Aproveitar as oportunidades que o universo nos dá de estreitar e fortalecer as relações humanas. A maternidade me fez sentir essa necessidade de fazer parte de uma comunidade, de pertencer a uma tribo. É mais seguro, creio, educar filhos amparada por uma rede de apoio e deve ser daí que vem essa minha nova necessidade. Ainda erro muito, ainda sou muito resistente em assumir que, sim, preciso de uma mão, que preciso de apoio. Anos de programação mental me sabotando. Ainda não me sinto completamente segura para pedir apoio, confesso, mesmo depois de todas essas conclusões. É um caminho longo mas espero que esse seja o primeiro passo.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

E isso me basta...

Durante um bom tempo da minha vida eu imaginei que seria uma executiva. Que viveria em função do dinheiro, do trabalho, do poder. Me imaginava num cargo importante, me imaginava vestindo tailleur, me imaginava tendo uma secretária. Em almoços de negócios, reuniões em que eu falaria inglês, viagens a trabalho.

Aí o tempo passou.

E hoje, me vendo aqui deitada há horas ao lado de duas criaturinhas adormecidas que exalam um cheirinho de suor digno de ser engarrafado como perfume, pelas quais eu sou capaz de matar e morrer, não consigo parar de pensar no quanto a vida da gente dá voltas.

Nós não temos mais dinheiro do que precisamos, nosso carro é popular, moramos numa casa antiga e financiada. Não temos planos de viajar pro exterior, só compramos roupas em promoção, não somos sócios de um clube. Eu provavelmente vou me aposentar trabalhando na mesma repartição, ganhando o mesmo salário. Não temos grandes ambições. A Vanessa de uns 10 anos atrás me acharia a maior perdedora. E, quer saber? Tudo bem.

Hoje temos coisas que eu jamais imaginava que teriam tanto valor: temos todas as manhãs livres, fazemos todas as refeições juntos, uma pizza e um vinho bastam pro sábado a noite. Temos bons amigos sempre em casa, temos filhos sendo cuidados por pessoas em quem confiamos, temos um casamento saudável. Temos uma cama enorme em que, vez ou outra, dormimos os quatro juntos. Temos um abraço silencioso quando tudo desanda. E isso, pra Vanessa de hoje, basta.



domingo, 5 de abril de 2015

"Mãe, você sabe o que é ovo de Páscoa?"

Foi o que eu ouvi do Tales essa semana.

a minha cabeça foi longe. Poderia ter respondido:

"Páscoa, Tales, é sobre um moço que tentou ensinar amor ao mundo. Tentou ensinar as pessoas a sentirem a dor do próximo como sendo a sua dor. Só que o mundo entendeu tudo errado. Então na Páscoa, ao invés de distribuirmos amor gratuitamente, compramos chocolate. Passamos a vida nos atacando, nos julgando, nos odiando, cada vez mais distantes uns dos outros, mas no dia da Páscoa nos presenteamos com ovos de chocolate. Por isso, pra mim, esse dia não tem sentido algum."

Não sou cristã. Não porque não acredito em Jesus Cristo, acredito sim. Acredito que foi um moço bacana, bem intencionado, com o coração cheio de amor ao próximo, coisa que eu respeito e admiro. Mas pra mim, parou aí. Ou melhor, antes tivesse parado aí. O que eu vejo por aqui não é nada nem próximo do que o cara lá tentou ensinar. O que vejo por aqui me faz concluir que não sou cristã. Não mesmo. Não quero estar do mesmo lado dos que pregam ódio ao diferente, dos que distorcem tudo e usam sua influência para manipular as massas. Prefiro buscar outros caminhos. 

Do dia em que comecei a pensar sobre espiritualidade até chegar ao dia em que eu falei em voz alta que não sou cristã se passou um bom tempo. Anos. Não é um raciocínio baseado em senso comum, pelo contrário. O senso comum me levava ao cristianismo. E eu hoje fujo dele.

O que não quer dizer que não tenho as minhas verdades, as minhas crenças pessoais, os meus princípios espirituais. Não sou ateia, embora compreenda quem seja. Só não me sinto à vontade tendo um salvador. Não é do meu perfil entregar toda a minha vida a um ser divino e esperar que ele me leve pelo caminho certo. Sou uma questionadora nata, sou uma chata em potencial, não consigo me conformar em não estar no comando da situação. Às vezes me pego pensando como seria melhor delegar essa função, seria como ter com quem dividir a culpa caso algo saísse errado. Acredito verdadeiramente que quem consegue fazer isso tem mais facilidade de ser feliz. Mas, de verdade, pra mim não serve. E não é nada pessoal com o tal do Jesus, acho mesmo que ele é um cara bacana. E se pra você ele é o salvador, pronto, então ele é o salvador. E sinta-se um privilegiado pois eu gostaria de conseguir sentir isso. Eu não subestimo a tua fé, por isso, me sinto no direito de esperar que você não subestime a minha não fé. 

Claro que é cedo pra falar sobre isso com o Tales, nem sei quando e como esse assunto vai surgir, se é que vai surgir. E espero também que demore pois ainda há muito o que ser problematizado para que eu, quem sabe, algum dia possa falar que tenho certezas sobre o assunto. Por enquanto, me limito a responder pontualmente às perguntas dele, sem entrar no mérito da espiritualidade. 

E quanto à pergunta sobre ovos de Páscoa, respondi da forma mais verdadeira e objetiva que consegui:

"Ovo de Páscoa é chocolate, Tales."

E é mesmo, não é? Não menti. Deveria significar mais coisa, mas não. Não significa. 



quarta-feira, 25 de março de 2015

...divagações matinais...



Era uma daquelas manhãs em que, depois de uma noite cheia de interrupções, sentia cada músculo reclamar a exaustão da falta de descanso noturno. Entre um bocejo e uma exclamação de dor, seu corpo encontra aconchego em um abraço calmo vindo de quem possivelmente sentia  o mesmo cansaço. Dividiam secretamente o mesmo abatimento e compartilhavam o mesmo algoz. O breve instante de paz fora interrompido prematuramente por aquele que os observava com um sorriso largo e que, ao encontrar uma pequena brecha, se fez pertencer àquele momento como quem o completava. Invadiu-lhes um sentimento de pertencimento, como se naquele momento todas as intempéries da noite passada se fizessem abafadas pela mais sincera manifestação daquele amor.

sexta-feira, 20 de março de 2015

O que você faria por você mesma?

Tenho convivido com a crônica sensação de que estou errando. Não com os meninos, pelo contrário. É em prol da felicidade deles que destino boa parte da minha energia diária. Gosto dessa dedicação, faço por amor e por vontade, mas devo confessar que me consome. Depois que voltei a trabalhar, tenho a sensação de que a vida se tornou uma sucessiva repetição de comandos que têm como finalidade somente a própria sobrevivência. Há pouco espaço pra algo que fuja dessa rotina. Me pergunto se não tinha que ser mais do que isso. Tinha? 

A rotina é desgastante e a nossa opção de terceirizar o mínimo possível da educação dos meninos nos sobrecarrega. Sei que o Julio também se sente assim, só não fala. A diferença é que ele não abandonou as atividades que faz por ele mesmo, futebol e tal. É um refúgio, coisa que eu não tenho. Por opção, talvez, mas não tenho. Sobra para o Julio a maior parte da carga, já que os meninos passam 2 dias por semana em casa e o solicitam bastante. Apesar de tudo, é lindo de ver o vínculo deles ficando ainda mais forte. Quem no mundo pode ter esse contato diário tão intenso com o pai? 

Não posso reclamar do meu trabalho, tenho noção de que nado no mar de privilégios que o serviço público oferece. O que me mata é olhar pela janela e ver a vida passando enquanto eu estou enfiada numa repartição. Apertando botões. Por dinheiro. Ser só mãe era diferente, mesmo que bem mais puxado. Era sufocante, era estressante, era puro cansaço físico, mas era uma entrega ideológica. Era a gente fazendo a vida acontecer e não só vendo ela passar. Mas esse post nem era sobre trabalho. Era sobre o quanto eu me exijo em busca da felicidade deles. Do quanto, nessa jornada, eu vou me perdendo de mim.

No olho do furacão, fazendo malabarismos diários para manter toda a engrenagem funcionando, olho pra mim e tento enxergar o que ficaria se eu não tivesse o cargo de mãe. O que ficaria se só houvesse a Vanessa, sem o "mãe do Tales e do Otto" para me definir. Fico sem resposta. Seria um erro tentar voltar a ser quem eu era antes da maternidade, não sou mais aquela e nem quero ser. Mas, quem sou eu, então?

Engraçado é que essa reflexão vem em um momento em que eu me sinto tão emocionalmente livre. O Otto não exige nem metade da entrega emocional que o Tales exigia nessa idade. Não sei dizer se o Tales me exigia ou se eu é que dependia daquela entrega. Pouco importa. Quando o Tales nasceu eu me fechei em um casulo e ficamos fusionados por uns 3 anos. Ele não vivia sem mim, eu morreria sem ele. Eu não tinha necessidades que não envolvessem ele, eu não existia sem ele, eu era ele. E isso não é uma reclamação. Aquilo me fazia feliz. Só de imaginar sair do trabalho e ir pra um happy hour sem ele me dava pânico. Eu queria estar com o meu filho, sempre, o tempo todo. Já o Otto é de uma autossuficiência incrível. Sinto que a ligação que ele tem com o Julio é tão forte quanto comigo. Não me sinto mais insubstituível como me sentia, e olhe só, gosto disso. Eu amo estar com ele, sinto uma saudade que chega a doer quando ficamos algumas horas separados. Mas é um sentimento mais maduro, mais calmo, menos passional. Não tem nada a ver com amar menos. Acho que está mais para uma maturidade emocional da minha parte. Tenho várias teorias pra explicar isso, mas todas ficam no campo do achismo, então, deixa pra lá.

Essa liberdade emocional que eu tenho agora me trouxe uma necessidade que eu não estava acostumada a ter: pensar em mim. Mas que esbarra na loucura que é a manutenção da vida. A rotina, os horários, tudo tão urgente, tão engessado a ponto de não me permitir sequer ter um tempo só pra mim. Tudo é prioridade, menos eu. Até porque, até esses dias, esse "eu" nem existia. Tudo era pra eles, tudo era por eles. Eu era eles. 

E quando falo em ter tempo pra mim, você aí pode estar pensando que tenho planos muito ousados. Que nada. Quero conseguir organizar minhas ideias, escrever, ler, relaxar minha mente. Claro que uma escapada com algumas poucas amigas num começo de noite depois de colocar os meninos pra dormir não me soa mal. Mas o que mais preciso nesse momento é estar comigo. Sinto falta de mim. Sinto falta de fazer algo por mim mesma. Será o fim do meu puerpério?

"Se você tivesse uma amiga que exigisse de você o quanto você se exige, quanto tempo você permitiria que essa pessoa fosse sua amiga?
Se você tivesse uma amiga que te tratasse da mesma forma como você se trata, quanto tempo você permitiria que essa pessoa fosse sua amiga?"

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

De volta a velha vida


E o ciclo se fechava ali, na manhã ensolarada da primeira quarta feira do ano de 2015: oficialmente eu deixava a função de mãe em tempo integral pra voltar a ser a mãe que trabalha fora. 

Fiquei um ano em casa. Um ano em que eu cresci uns 10. Um ano que valeu mais do que boa parte do que eu já vivi durante toda a minha vida adulta. Um ano em que eu precisei tomar decisões que me levaram a viver coisas que eu jamais teria vivido por pura inércia. Sabe aquela história do "não se acostume com o que não te faz feliz"? A gente se acostuma, sim. E bem fácil. E por preguiça. E só vê que a mudança foi o melhor que poderia acontecer depois que passa o desespero inicial.

Foi nesse ano que tiramos o Tales da escola. Na época, a atitude foi considerada uma loucura por 10 em cada 10 pessoas em sã consciência. Afinal, eu tinha um bebê recém nascido em casa e, sabe né, dá trabalho. Nós tomamos a decisão sem certeza de nada, foi uma atitude baseada em amor, nada mais. E foi lindo, do começo ao fim. Se é que já teve um fim. Tê-lo com a gente em tempo integral, acordar junto, fazer todas as refeições juntos, passar a tarde brincando, conhecer os seus amigos imaginários, estar disponível pra ser o colo que ele busca quando algo não sai como o imaginado, isso foi o exercício de maternidade mais pleno que eu poderia ter. Tê-lo deixado na escola teria sido mais cômodo, mas bem menos vivo. Ele não estava feliz, tampouco eu. Só que a gente se acostumaria, não tenho dúvidas disso. A resiliência é uma qualidade humana um tanto ingrata. Faz você se acostumar e se adaptar ao que não te faz bem. Há algum tempo alguém me falou que bom mesmo é o filho que traz problemas, porque tira a gente da inércia. Hoje eu concordo em absoluto. E sou muito grata ao Tales por me fazer enxergar mais isso.

Por ter o Tales fora da escola, passei o ano em busca de lugares onde ele pudesse interagir com crianças, mas onde eu também fosse bem vinda. Não queria largar ele e ir embora. Queria ficar observando como ele se saía, já que ele vinha de um período difícil de insegurança. Eu queria algo que eu nem sabia se existia. E os dias foram passando, a vida tomando um rumo tal que quando eu me dei conta nós estávamos passando quase todas as tardes na Casa Labirinto. Um lugarzinho fofo, com uma atmosfera leve, um clima de sexta feira a tarde e cheiro de casa de vó que nos acolheu e nos ganhou pra sempre. A ideia da casa é ser um lugar lúdico em que a criança se sinta livre para ser somente criança. Sem preocupação com o pedagógico, com a alfabetização, com o currículo, com a grade horária. Nada mais do que brincar. Tipo um recreio em tempo integral. Pronto, era isso que eu procurava! Lá eu conheci pessoas que tornaram a minha jornada, sempre tão exaustiva, mais leve. Conheci pessoas com um estilo de vida que eu quero pra mim. Gente que anda por um caminho tão de luz que só irradia coisas boas por onde passa. Gente que, muitas vezes sem saber, salvava meus dias. Me fazia ter certeza de que era por aí o caminho, e que eu não estava sozinha nessa busca. Gostamos tanto que o plano agora é levar o Tales e o Otto para passar algumas tardes lá enquanto eu trabalho. Foi a melhor alternativa que conseguimos para fugir da escolarização.

Como esse foi um ano em que eu me dediquei completamente aos meninos, claro que teria que faltar de algum lado. A rotina é cruel quando se tem dois filhos pequenos e se passa o dia todo na função. Nesse ano meu casamento foi se modificando de tal forma que se alguém conseguisse prever o futuro e me contasse que ia ter um final feliz eu faria uma cara de interrogação, totalmente desacreditada. É uma conquista diária manter a paz no relacionamento a dois quando o caos de uma casa com duas crianças toma o lugar do romantismo. Mas, aos poucos, não sem muita conversa, não sem muita lágrima, a gente vai encontrando um amigo onde antes havia um amante. Vai encontrando um amor maduro no lugar de uma paixão louca. Vê que o amor se manifesta em pequenos gestos. Que o casamento é baseado em pequenas trocas. E vai vendo que o que vale mesmo é isso, o dia a dia, o companheirismo, a parceria. 

E com a chegada do fim de ano o fantasma da volta ao trabalho começava a me assombrar. Nesse ano todo eu não passei um dia sequer sem tentar encontrar uma forma de não precisar mais terceirizar uma parte da criação dos meus filhos. Fui e voltei milhares de vezes de idéias furadas, que nunca saíram dos planos. E, bom, como você deve estar percebendo, não encontrei solução, voltei a trabalhar e optamos pela via menos impactante pra eles. Escola era a nossa última opção. Eu sinto que errei com o Tales ao escolarizá-lo tão cedo e seria um absurdo repetir isso com o Otto. Optamos por, num primeiro momento, deixá-los em casa com uma babá. A ruptura me parecia menos abrupta já que eles continuarão em ambiente familiar. O pai trabalha em casa e está disponível quando a saudade bate. A rotina segue a mesma de quando eu estava presente, a alimentação, a soneca no meio da tarde sem hora pra acabar, o cheiro de casa, o aconchego. Então agora passam algumas tardes em casa e outras na Casa Labirinto. E com a consciência de que tudo é tentativa e erro. Se não funcionar, mudamos tudo outra vez.  

Aí chegou o primeiro dia de volta à velha vida. E foi tudo de uma leveza, de uma naturalidade, que me fez sentir uma certa vergonha da auto importância que eu me dava. É engraçado como a gente se prende a papéis (eu, no caso, o papel de mãe insubstituível) e, especialmente quando se gosta muito do papel que "representa", a gente se agarra naquilo como se isso fosse quem realmente somos. E a gente luta com toda força, tenta se convencer a todo custo que estamos ali tão somente porque se saírmos, a casa cai. Só que não cai. E a sensação de ver que não cai é ainda melhor do que aquela falsa ilusão de que carregamos o mundo nas costas. É libertador. 

Hoje faz duas semanas que estou passando as tardes longe deles. Ainda não me encontrei totalmente no ambiente de trabalho. Talvez porque eu sou uma pessoa bem diferente da que saiu. Um ano vendo a vida de outro ângulo muda muitos paradigmas. Mas como trabalho com pessoas maravilhosas, cada uma a sua maneira, e temos um ambiente bom, não é nenhum sofrimento passar o dia lá, pelo contrário.

E, aos poucos, tudo vai começar a fazer sentido novamente.