domingo, 23 de março de 2014

O parto do Otto

2h da manhã. Uma cólica. Fraca. Eu estava dormindo, acordei com o barulho do Julio se preparando pra dormir. Será? Sempre me falaram que quando fosse realmente a hora eu saberia, então se eu não tinha certeza, provavelmente não era. Volto a dormir. Outra cólica. Era a hora. Chegou o momento que eu esperei tanto. Mas vai demorar, claro. Vou tentar dormir. Mais uma. Como eu esperei sentir aquilo, difícil até de acreditar que o momento chegou. Preciso marcar o intervalo das contrações. Irregulares, bem espaçadas, dor muito suportável, vai demorar muito. Queria dormir, mas não conseguia. No auge de uma contração o Julio acorda e percebe que estou com dor.

“Tá tudo bem? Tá com dor?”
“Contrações, mas estão bem irregulares, pode dormir porque vai demorar.”
“Mas, como assim? Já é contração de parto?”
“É, mas é só o começo, pode demorar muito. Não se preocupe que eu estou bem.”

As dores foram ficando mais intensas, mais próximas, mas ainda sem ritmo. Fui pro banho. Tomei banho com a luz apagada, pra não despertar, queria voltar a dormir ainda. A água morna caindo na lombar aliviava toda a dor.

3h. Volto pra cama, sem roupa, enrolada na toalha. As dores agora vinham com mais força e com mais frequência, mas ainda sem ritmo.

“Ainda tá doendo?”
“Tá. Mas pode dormir, não vai acontecer nada antes de amanhecer”

……..

Contração, contração, contração.

……..

“Está vindo com mais frequência, né? Será q não é a hora de ir pra maternidade?”
“Não, não é assim, Julio. Só vou quando estiver insuportável.”

[Eu queria ir pra maternidade o mais tarde possível porque normalmente o trabalho de parto evolui melhor e é mais rápido em um ambiente em que a parturiente se sente segura. Com muitas mulheres o trabalho de parto acaba estacionando quando a mulher chega na maternidade. Aí, inevitavelmente, ela acaba sendo sujeita a intervenções médicas para acelerar o parto, o que aumenta a dor e também os riscos, especialmente pra quem, assim como eu, teve uma cesárea prévia.]

…….

4h40. Escuto um “ploft”, como se fosse um bexiga estourando. Levanto rápido e instintivamente coloco a toalha no meio das pernas. Era a bolsa estourando. A toalha era branca, deu pra ver que a água estava escura. Meu obstetra havia me alertado a observar a cor da água, se a bolsa rompesse em casa. “Caso seja clara fique tranquila e observe as contrações. Caso seja escura, me ligue imediatamente.” Era escura.

[A água fica escura pelo cocôzinho do bebê, o que pode indicar que ele está em sofrimento. Embora somente este fato não signifique nada isoladamente, é preciso avaliar outras coisas para afirmar, como o batimento cardíaco fetal]

“Julio, a água. A água esta escura.”
“E agora? Vamos pro hospital!?”
“Calma, vamos ligar pro Dr. Alvaro.”


“Não atende, Vanessa! Melhor a gente ir pro hospital!

[Nessa hora eu senti medo. Eu sabia que a água escura não era um bom sinal, meu bebê poderia estar em sofrimento, eu precisava fazer alguma coisa. Mas eu também sabia que chegar numa maternidade cesarista com bolsa rota, água escura, provavelmente sem dilatação e sem o meu obstetra… pfff… era cesárea de emergência mesmo que estivesse tudo bem com a gente! Mas ok, vamos. Eu realmente não contava com aquela água escura. Perdi o chão. Mas eu não poderia colocar meu bebê em risco. Dane-se o meu parto.]

As contrações ficaram muito fortes depois de romper a bolsa. Mal conseguia andar. Ajoelhava no chão. Uma contração atrás da outra, poucos segundos pra respirar. Desço e sigo em direção ao carro, parando a cada contração. A dor é bem forte, começa nas costas e irradia para o baixo ventre. Eu massageava a lombar numa tentativa em vão de aliviar um pouco. Totalmente em vão. Mas a dor não é constante, é como uma onda, começa leve e vai aumentando até o ponto que você pensa que não vai mais aguentar, ai ela começa a diminuir e some completamente. E você ganha alguns segundos pra respirar e se preparar pra próxima.

O trajeto até a maternidade é longo, uns 6 km, mas nessa hora eu já não estava mais nesse plano. A dor intensa tira a racionalidade, leva a gente pra um estado de consciência diferente.

Chegando na maternidade o Julio foi fazer o internamento e eu de cócoras no meio do corredor tentando achar uma posição que aliviasse, em vão. Escutei alguém gritando chamando uma enfermeira. Me levaram pra sala de triagem. Aí começou a minha luta contra o falido sistema obstétrico tradicional brasileiro. 

[O sistema tira da mulher o protagonismo do parto, tira da mulher a confiança no seu corpo, infantiliza a mulher a ponto de fazê-la acreditar que não é capaz de parir sem intervenção médica, que seu corpo é defeituoso. Um sistema que leva diariamente milhares de mulheres para uma grande cirurgia, desnecessariamente. A maioria destas mulheres queria parir, mas a série de erros e violências que ela sofre desde que dá entrada na maternidade a fazem ter certeza de que ela não é capaz. E pior, que foi “salva” pela cesárea. Eu não queria mais fazer parte dessa estatística.]

“Tá de quantas semanas?”
“41”
“Bolsa rota?”
“Sim”
“Deita na maca que o obstetra já está vindo te avaliar”
“Não consigo deitar, prefiro ficar aqui. Me dá um copo d’agua?”
“Não pode tomar água, preciso que você deite pra ele te examinar”
“ok”

Chega o obstetra plantonista. Ouve o coraçãozinho do bebê, tudo bem. Faz o toque, sete centímetros.

“É teu primeiro filho?”
“Não, segundo”
“O primeiro foi parto ou cesárea?”
“Cesárea”
“E esse vai querer cesárea também?”
“Não”
“Ok, estamos tentando falar com o teu obstetra, enquanto isso vamos pro centro obstétrico”
“Eu preferia esperar meu médico chegar no quarto”
…risos da equipe plantonista…
“Não dá, mãezinha”
“senta na cadeira de roda pra eu levar você, mãezinha”
“eu prefiro ir andando”
“você não vai conseguir”
“eu não vou sentar, eu vou andando!!”

[Chamar a parturiente de "mãezinha" ao invés de chamá-la pelo nome, dizer o que ela não vai conseguir fazer, são exemplos de como se infantiliza uma mulher. Mulheres infantilizadas têm medo, se sentem incapazes. Não seria mais honesto encorajar a mulher neste momento?]

O Julio foi fazer a papelada do internamento e eu fui pro Centro Obstétrico. Fomos direto pra sala de parto, que sinceramente deveria se chamar “sala de cirurgia” porque não é uma sala preparada para parto, absolutamente. É perfeita pra te operarem, não pra você parir.
A enfermeira me ofereceu analgesia, eu não quis. Pediu pra que eu deitasse que meu médico logo chegaria e saiu da sala. Não deitei, fiquei acocorada no chão, era a posição que me deixava mais confortável.

[A posição horizontal é a menos indicada para o parto normal, porque é contra a gravidade, além de aumentar muitíssimo a dor. O mais indicado é que a parturiente fique na posição que ela escolher. Só durante o trabalho de parto ela consegue saber como quer ficar. Ficar na posição que se sente mais confortável diminui drasticamente a chance de laceração.]

Entraram duas enfermeiras na sala conversando entre si, mexendo em agulhas, acessos, etc. Uma fala pra outra “eu trouxe o sorinho, será que ela vai querer, porque não quis nem analgesia…” Eu me meti na conversa dizendo que não queria. Elas saíram da sala.

[O "sorinho" é ocitocina sintética, usado para acelerar as contrações e fazer o trabalho de parto durar menos tempo. Quando se usa o sorinho a dor aumenta desumanamente, além de não ser indicado para quem tem uma cesárea prévia, já que faz o útero se contrair artificialmente, aumentando o risco de ruptura uterina devido a cicatriz da cesárea.]

Voltaram pedindo pra que eu deitasse na maca.

“Moça, deite na maca, pela posição que você está o teu bebe está quase nascendo, é melhor você deitar”
“Eu não consigo deitar, prefiro ficar assim!”

Continuo ali no chão, acocorada e sozinha. Peço pra chamarem meu marido.

“Calma, ainda não é a hora, quando estiver nascendo ele vem”

A enfermeira insiste que eu preciso deitar na maca, eu me nego.

“Se você não deitar na maca teu bebê vai nascer e cair de cabeça no chão, você quer isso?”
“Se é só essa a ajuda que você pode me dar, eu dispenso… pode me deixar aqui sozinha que eu sei o que é melhor pra mim e pro meu filho”

[Tudo que eu precisava nessa hora era acolhimento, era incentivo, era alguém pra me falar que estava tudo bem e que tudo daria certo, não alguém me dizendo q meu filho cairia no chão. Fui muito grossa com a enfermeira nessa hora e não me arrependo.]

Ela sai da sala e eu fico sozinha de novo.

Entra o obstetra plantonista

“Eu preciso que você deite na maca porque não vai dar tempo do teu medico chegar então eu vou fazer o teu parto”
“Eu já falei que não vou deitar e eu não preciso que você faça o meu parto, eu sei o que fazer e farei sozinha”

[Essa frase "fulano fez meu parto" sempre me incomodou. Em condições normais o médico não faz nada, quem faz todo o trabalho é a mulher.]

Ele não ficou muito contente, mas não insistiu. Sentou e ficou só me olhando. Tive outra contração forte e gritei algo como “aaiii, me ajude”… o obstetra falou “ué, você não disse que sabia o que fazer e faria sozinha?”

Passada a dor, me vi sozinha novamente na sala.

Comecei a sentir uma vontade imensa de empurrar, de fazer força. Incontrolável. A dor sumiu totalmente, só sentia uma pressão no assoalho pélvico e minha barriga baixou assustadoramente. Saiu o tampão mucoso, bem maior e mais cheio de sangue do que eu imaginava. A cada contração eu empurrava e sentia a cabecinha coroando e voltando.

“Vai nascer, chama meu marido!!!”

Entraram o médico e as enfermeiras novamente.

“Moça, é sério, você não pode ter esse bebê aí no chão, eu vou te ajudar a subir na maca, não precisa deitar se não quiser, mas suba na maca!”

“ok, mas eu não vou deitar…”

Nessa hora lembro que olhei bem pra cara do médico e disse:

“Doutor, eu não quero episio, de jeito nenhum!”
“Tudo bem, mas suba na maca”

[Episiotomia é o corte feito no períneo para supostamente facilitar a saída do bebê. As evidências cientificas mostram que nenhuma episio é necessária, porque não ajuda em nada, não previne laceração já que é pior que uma laceração. Episiotomia é crueldade, é mutilação genital. Porém, a maioria dos médicos a faz sem ao menos consultar a parturiente.]

Subi na maca e fiquei de cócoras. Pedi pra chamarem o Julio. Me deixaram sozinha de novo.

Eu sentia a cabecinha coroando e voltando. O Julio chegou e se assustou por eu estar sozinha, não entendeu nada. Ele esperava algo parecido com a cesárea, esperava que ia assistir e não participar. Eu não consegui explicar nada do que eu tinha passado, só disse pra ele ficar ali comigo, e ele ficou. Na próxima contração o bebê coroou.

[É impressionante o controle que a gente tem do períneo, coisa que eu nem sonhava. Eu estava “segurando” o bebê já há algumas contrações, quando me vi segura, relaxei o períneo para que ele coroasse. Se eu estivesse anestesiada não teria esse controle] 

Pedi pro Julio olhar:

“Julio, olhe lá, saiu a cabecinha…”
“Meu Deus, saiu a cabeça, o que que eu faço, vou chamar alguém!!!”
“Não, calma, tá tudo certo, é assim mesmo, não chama ninguém. Pega aquele pano e se prepara porque na próxima contração vai sair o bebê inteirinho e você precisa segurar.”
“Mas não é melhor eu chamar o médico, e se acontecer alguma coisa?”
“A única coisa q vai acontecer agora é esse bebê nascer! Se prepara que é agoraaa…”

Veio a contração, sem dor nenhuma, só a vontade de empurrar. Senti o Otto saindo inteirinho de dentro de mim. Um alivio indescritível. Uma sensação de poder, de domínio do meu corpo, coisa que eu jamais havia sentido antes. Eu só pensava que se eu fiz isso, eu faço qualquer coisa!

O Julio pegou o Otto, enrolou no pano e me deu. Encolhidinho, chorou forte, alto. Eu estava em êxtase.



“Agora eu vou chamar um médico, Vanessa…”
“HAHAHA, agora você pode chamar quem você quiser!”

Entraram todos, obstetra plantonista, enfermeiras, pediatra…

Pedi pra ficar com o bebê por um tempo, eu queria dar o peito antes de levarem ele para os exames. O pediatra concordou. Sugeriu que eu tirasse a roupa e colocasse o bebê em contato com a minha pele e assim tentasse amamentar. Fiquei com ele um bom tempo assim.

[As evidências mostram que amamentar o bebê na primeira hora de vida, assim como colocá-lo diretamente na pele, favorece a descida do leite e a criação de vínculo entre a mãe e o bebê.]

 O obstetra disse que precisava tracionar a minha placenta, que ainda não havia “nascido”. Eu neguei.

“Eu queria esperar ela sair naturalmente, com as contrações”
“É que as vezes ela não sai sozinha e é preciso dar uma puxada”
“Vamos esperar pelo menos mais uma contração então”
“Mas não tem porque esperar…”

Eu estava cansada demais pra continuar aquela discussão, por sorte o pediatra que estava na sala ouviu e interferiu:

“Doutor, faz o que ela tá pedindo, não custa…”

A contra gosto ele esperou e a placenta saiu inteira na primeira contração.

Não satisfeito, ele queria cortar o cordão desesperadamente. Eu pedi pra esperar parar de pulsar. Ele argumentou. O pediatra novamente interferiu.

“Dá pra esperar sim, vamos esperar”

[Enquanto o cordão está pulsando, o sangue da placenta está indo para o bebê, o que previne a anemia no recém nascido.]

Depois de cortado o cordão, fiquei ainda alguns minutos com o Otto nos braços, amamentando.

Pouco antes de levarem ele para pesar e examinar, chegou o meu obstetra, esbaforido e se desculpando. Não havia do que se desculpar, nem nos meus melhores sonhos eu imaginaria que meu trabalho de parto fosse ser tão rápido. Ele demorou cerca de meia hora, mas já era tarde. Ele me examinou para ver se não havia laceração. Nada. Uma pequena escoriação, mas que não seria preciso nenhum ponto. O Julio foi com o pediatra acompanhar os procedimentos no bebê e depois nos encontramos no quarto.

...........

O Otto nasceu às 6h da manhã do dia 30/01/14, com 3750g e 52cm, apgar 10 e 10, de 41 semanas e 5 dias de gestação, depois de 4 horas de trabalho de parto sem nenhuma intervenção médica, aparado pelo pai em um parto natural hospitalar desassistido.