segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Vai, filho... ouse!

Não deixe que te digam o que você não vai conseguir fazer. Não siga a manada, não leve a vida no modo automático, repetindo padrões sem questioná-los. Gente que busca alternativas, que desvia do padrão, que olha para os lados, que se analisa, é gente que dá trabalho. Sair da zona de conforto, não fazer como todo mundo sempre fez só porque sempre foi assim, questionar, debater e argumentar. Isso tudo nos leva a mudanças. Mudanças de padrões que nos mantém acomodados em uma perfeita ilusão. 

Ousar é viver no modo manual, é tomar as rédeas da vida, é escrever sozinho a sua própria história. Você vai errar, claro que sim. Mas só erra quem ousa tentar. Quem foge do caminho pré determinado, da linha reta, do quentinho e seguro. Quem vai em busca de descobrir o que faz sentido pra si, solitariamente. 

Sempre haverá o medo de não estar fazendo as escolhas certas, já que não há certezas por esse caminho. A dúvida será sua parceira constante. Não é fácil destoar do bando. Não mesmo. Não é fácil pensar fora da bolha, mas eu te garanto que aqui fora tem muito mais ar. 

Vai, filho... Ouse! Vão te dizer que enciclopédia não foi feita pra servir de escada pra alcançar a pia, mas nem ligue. Adultos costumam ter um olhar limitado, temos dificuldade em enxergar o que vocês estão vendo. Nos acostumamos com o seguro, o enfadonho, o convencional. Por isso, ouse! Por você, por nós. 

No seu tempo, busque as suas verdades, do seu jeito.

E não esqueça: se algo der errado, estaremos aqui pra te ajudar a levantar. 





segunda-feira, 14 de abril de 2014

Quando nasce um irmão, nasce o ciúme...

Aí o Julio chega em casa e diz:

“Vanessa, precisamos conversar. Em alguns dias vou trazer para casa uma outra mulher, uma mulher muito bacana, vocês poderão ser muito amigas. Você precisará entender e ser madura o suficiente para me ajudar com a adaptação dela, afinal o começo será difícil para todos nós. Para que ela se sinta protegida, nos primeiros meses ela é quem vai dormir comigo, mas não se preocupe, você vai ganhar um quarto lindo só pra você! Vou pegar uma licença no trabalho para poder ficar com ela em tempo integral mas seria bom que você continuasse indo todos os dias trabalhar, porque eu não conseguiria dar atenção a vocês duas juntas. Eu disse a ela que não trouxesse muitas roupas, que você emprestaria as suas, aquelas que você não usa mais, sabe? Ah, o pessoal está louco para conhecê-la, logo que ela chegar iremos receber muitas visitas e provavelmente trarão presentes pra ela. Espero que você não sinta ciúmes, afinal eu amo vocês duas igualzinho.”

E aí?

Claro que essa historinha não é real, eu li algo parecido com isso em um livro de um pediatra espanhol e achei perfeito pra me colocar no lugar do Tales e entender o que se passa na cabeça de uma criança que ganha um irmão, guardadas as devidas proporções.

O Tales e eu sempre tivemos uma conexão emocional muito grande, o senso comum definiria como “são muito grudados”. Ele mamou no peito até pouco mais de 2 anos, e isso ajudou bastante na criação de um vínculo emocional bem forte. Eu sentia que eu era o porto seguro dele. Só eu. Segurança em forma de leite. Aí ele foi desmamando, foi crescendo, o vínculo foi mudando. Não ficou mais fraco, mas ficou diferente. A sensação era de que ele agora confiava também em outras pessoas, não mais só em mim. Se saciava em outras fontes. Não éramos mais uma só emoção para dois corpos. E isso pra mim nunca foi algo ruim, confesso que me senti até aliviada quando percebi o que estava acontecendo: meu bebê estava crescendo. Eu não era mais insubstituível. Um grande alívio para uma pessoa que, depois que se tornou mãe, desenvolveu um medo absurdo da morte. Medo de faltar para alguém com quem eu tinha um vínculo vital.

Esse vínculo eu poderia definir como sendo um pequeno fio, em que eu segurava em uma ponta e ele na outra. Ele até poderia ir longe de mim, mas sempre segurando a ponta do fiozinho. Sempre sabendo pra onde voltar. Até o dia em que ele se sentiu seguro para ir até onde o fio não alcançava e então precisou largar. E foi. E encontrou coisas muito bacanas por lá, pessoas boas, um mundo novo. Mas pouco tempo depois de ter largado o fio, percebeu que alguém agora estava segurando no lugar que era seu. E se ele precisasse voltar? E se tivesse errado ao largar? E se algo acontecesse de ruim, pra onde ele correria?

O que ele ainda não sabe, e é nossa obrigação como pais ensinar, é que esse fiozinho imaginário só tem função enquanto a gente ainda não conhece o caminho de volta. Depois de um tempo, mesmo sem esse referencial, já fomos e voltamos tantas vezes que conhecemos o caminho e sabemos que nosso lugar estará sempre lá. Podemos deixar que outra pessoa menos experiente segure na ponta do fio, pois já não precisamos mais dele.



Aqui em casa tivemos um início bem tranquilo, chegamos até a comemorar timidamente o fato de o Tales não estar enciumado com a chegada do irmão. O que seria totalmente antinatural, eu sei, já que ele tem apenas 2 anos. As primeiras duas semanas foram bem atípicas, ele estava encantado. Mas passado o período de euforia, imagino que ele pensou: “Deu né, neném? Acabou a graça, pode ir embora agora!”. E não, ele não foi embora. E o ciúme bateu forte.

Aos poucos estamos encontrando formas de mostrar a ele que nada mudou, que o Otto veio para somar e não dividir. Mas que o ciúme é um sentimento legitimo e que estamos aqui para acolhê-lo e ajudá-lo nessa fase difícil.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

E que a minha loucura seja perdoada...

Uma farsa. Era isso que eu me sentia, uma mentira. Eu nunca acreditei que escola é o lugar ideal para uma criança pequena. Rotina rígida, horário fixo, obrigação de ir todos os dias para o mesmo lugar, não era o que o meu filho precisava nessa idade. Essa era uma obrigação social minha, que eu assumi por livre vontade quando resolvi trabalhar fora. Ele não. Ele não escolheu isso, nem precisava disso, era algo que eu impus a ele por falta de opção. Isso sempre esteve muito claro pra mim, já até falei sobre isso aqui.

Aí eu engravidei do Otto. Aí o Otto nasceu e cá estou eu, em casa o dia todo, de licença maternidade. E a farsa começou.

Eu sempre quis ficar em casa cuidando dos meus filhos em tempo integral, nunca escondi de ninguém esse meu desejo. Trabalho fora por dinheiro, se me pagassem o que eu ganho pra ser só mãe eu topava fácil. Mas agora eu estava em casa e continuava levando o Tales pra escola. Contra tudo o que eu acredito e, pior, contra a vontade dele. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço. Eu era uma fraude.

E não estava fácil levar adiante. Todos os dias, desde a hora de colocar o uniforme era choro. Era choro e pedido para não ir pra escola. Era choro pra entrar no carro, era choro pra sair do carro, era choro pra entrar na escola. Era eu chorando em casa sozinha o resto do dia. Era eu tentando me acostumar com o que me matava por dentro. Eu sabia que precisava fazer alguma coisa.

Os conselhos chegavam de todos os lados:

“Não ceda, ele está te manipulando”
“Toda criança chora, é normal, logo ele acostuma”
“Ele tá com ciúmes do irmãozinho, o meu também passou por isso, nem ligue”
“Criança não tem querer, escola é obrigação”

Eu tenho péssimas lembranças de escola na minha primeira infância. Não lembranças de fatos em si, mas de sentimentos. Angústia. Solidão. Só de pronunciar o nome da escola que eu frequentava quando era bem pequena me dá um nó no estômago. Já da escola que eu fui quando era um pouco maior (uns 4 anos) eu tenho ótimas lembranças.

Na ânsia de achar “culpados” fui atrás de outra escola, tentando me convencer que o problema era aquela escola. Quem eu queria enganar? Conheci uma escola linda, com uma pedagogia diferenciada (waldorf), mais leve, aconchegante, com cara de casa de vó, fiquei super animada. Passamos algumas semanas analisando, tentando tomar uma decisão em meio a muito choro. O Julio foi contra mudar de escola. Voltamos à estaca zero.

Um dia o Tales falou uma frase que me fez ver que aquele embrulho no estômago que eu ficava depois de levá-lo chorando pra escola era o melhor indicador de que eu estava errando, e errando muito. Eu estava trocando a fralda do Otto, que chorava. O Tales chegou perto dele e disse:

“Pare de chorar, neném... senão você vai pra escolinha, heim?”

Aquilo foi o tapa na cara que eu merecia. O que eu estava fazendo? Pro Tales, escola era punição.

Marcamos uma reunião com a pedagoga da escola. Fui com 5 pedras na mão, esperava ouvir conselhos no mesmo estilo dos que eu já vinha ouvindo dos outros. A conversa começou com faíscas, com frases no estilo “crianças são espertas, elas te manipulam”. Taquei minhas primeiras pedradas. Aos poucos a conversa foi tomando outro rumo, menos institucional e mais humana. Menos cérebro e mais coração. Menos pedagógica e mais materna. Fomos acolhidos, apoiados, compreendidos. Saímos de lá com o apoio que precisávamos para tirar o Tales da escola com a tranquilidade de que ele poderá voltar no ano que vem, se quisermos.

E assim está nossa vida agora, de cabeça pra baixo com 2 crianças em casa. Como vai ser daqui pra frente? Não sabemos muito bem. Mas sabe aquele embrulho no estômago? Sumiu.




domingo, 23 de março de 2014

O parto do Otto

2h da manhã. Uma cólica. Fraca. Eu estava dormindo, acordei com o barulho do Julio se preparando pra dormir. Será? Sempre me falaram que quando fosse realmente a hora eu saberia, então se eu não tinha certeza, provavelmente não era. Volto a dormir. Outra cólica. Era a hora. Chegou o momento que eu esperei tanto. Mas vai demorar, claro. Vou tentar dormir. Mais uma. Como eu esperei sentir aquilo, difícil até de acreditar que o momento chegou. Preciso marcar o intervalo das contrações. Irregulares, bem espaçadas, dor muito suportável, vai demorar muito. Queria dormir, mas não conseguia. No auge de uma contração o Julio acorda e percebe que estou com dor.

“Tá tudo bem? Tá com dor?”
“Contrações, mas estão bem irregulares, pode dormir porque vai demorar.”
“Mas, como assim? Já é contração de parto?”
“É, mas é só o começo, pode demorar muito. Não se preocupe que eu estou bem.”

As dores foram ficando mais intensas, mais próximas, mas ainda sem ritmo. Fui pro banho. Tomei banho com a luz apagada, pra não despertar, queria voltar a dormir ainda. A água morna caindo na lombar aliviava toda a dor.

3h. Volto pra cama, sem roupa, enrolada na toalha. As dores agora vinham com mais força e com mais frequência, mas ainda sem ritmo.

“Ainda tá doendo?”
“Tá. Mas pode dormir, não vai acontecer nada antes de amanhecer”

……..

Contração, contração, contração.

……..

“Está vindo com mais frequência, né? Será q não é a hora de ir pra maternidade?”
“Não, não é assim, Julio. Só vou quando estiver insuportável.”

[Eu queria ir pra maternidade o mais tarde possível porque normalmente o trabalho de parto evolui melhor e é mais rápido em um ambiente em que a parturiente se sente segura. Com muitas mulheres o trabalho de parto acaba estacionando quando a mulher chega na maternidade. Aí, inevitavelmente, ela acaba sendo sujeita a intervenções médicas para acelerar o parto, o que aumenta a dor e também os riscos, especialmente pra quem, assim como eu, teve uma cesárea prévia.]

…….

4h40. Escuto um “ploft”, como se fosse um bexiga estourando. Levanto rápido e instintivamente coloco a toalha no meio das pernas. Era a bolsa estourando. A toalha era branca, deu pra ver que a água estava escura. Meu obstetra havia me alertado a observar a cor da água, se a bolsa rompesse em casa. “Caso seja clara fique tranquila e observe as contrações. Caso seja escura, me ligue imediatamente.” Era escura.

[A água fica escura pelo cocôzinho do bebê, o que pode indicar que ele está em sofrimento. Embora somente este fato não signifique nada isoladamente, é preciso avaliar outras coisas para afirmar, como o batimento cardíaco fetal]

“Julio, a água. A água esta escura.”
“E agora? Vamos pro hospital!?”
“Calma, vamos ligar pro Dr. Alvaro.”


“Não atende, Vanessa! Melhor a gente ir pro hospital!

[Nessa hora eu senti medo. Eu sabia que a água escura não era um bom sinal, meu bebê poderia estar em sofrimento, eu precisava fazer alguma coisa. Mas eu também sabia que chegar numa maternidade cesarista com bolsa rota, água escura, provavelmente sem dilatação e sem o meu obstetra… pfff… era cesárea de emergência mesmo que estivesse tudo bem com a gente! Mas ok, vamos. Eu realmente não contava com aquela água escura. Perdi o chão. Mas eu não poderia colocar meu bebê em risco. Dane-se o meu parto.]

As contrações ficaram muito fortes depois de romper a bolsa. Mal conseguia andar. Ajoelhava no chão. Uma contração atrás da outra, poucos segundos pra respirar. Desço e sigo em direção ao carro, parando a cada contração. A dor é bem forte, começa nas costas e irradia para o baixo ventre. Eu massageava a lombar numa tentativa em vão de aliviar um pouco. Totalmente em vão. Mas a dor não é constante, é como uma onda, começa leve e vai aumentando até o ponto que você pensa que não vai mais aguentar, ai ela começa a diminuir e some completamente. E você ganha alguns segundos pra respirar e se preparar pra próxima.

O trajeto até a maternidade é longo, uns 6 km, mas nessa hora eu já não estava mais nesse plano. A dor intensa tira a racionalidade, leva a gente pra um estado de consciência diferente.

Chegando na maternidade o Julio foi fazer o internamento e eu de cócoras no meio do corredor tentando achar uma posição que aliviasse, em vão. Escutei alguém gritando chamando uma enfermeira. Me levaram pra sala de triagem. Aí começou a minha luta contra o falido sistema obstétrico tradicional brasileiro. 

[O sistema tira da mulher o protagonismo do parto, tira da mulher a confiança no seu corpo, infantiliza a mulher a ponto de fazê-la acreditar que não é capaz de parir sem intervenção médica, que seu corpo é defeituoso. Um sistema que leva diariamente milhares de mulheres para uma grande cirurgia, desnecessariamente. A maioria destas mulheres queria parir, mas a série de erros e violências que ela sofre desde que dá entrada na maternidade a fazem ter certeza de que ela não é capaz. E pior, que foi “salva” pela cesárea. Eu não queria mais fazer parte dessa estatística.]

“Tá de quantas semanas?”
“41”
“Bolsa rota?”
“Sim”
“Deita na maca que o obstetra já está vindo te avaliar”
“Não consigo deitar, prefiro ficar aqui. Me dá um copo d’agua?”
“Não pode tomar água, preciso que você deite pra ele te examinar”
“ok”

Chega o obstetra plantonista. Ouve o coraçãozinho do bebê, tudo bem. Faz o toque, sete centímetros.

“É teu primeiro filho?”
“Não, segundo”
“O primeiro foi parto ou cesárea?”
“Cesárea”
“E esse vai querer cesárea também?”
“Não”
“Ok, estamos tentando falar com o teu obstetra, enquanto isso vamos pro centro obstétrico”
“Eu preferia esperar meu médico chegar no quarto”
…risos da equipe plantonista…
“Não dá, mãezinha”
“senta na cadeira de roda pra eu levar você, mãezinha”
“eu prefiro ir andando”
“você não vai conseguir”
“eu não vou sentar, eu vou andando!!”

[Chamar a parturiente de "mãezinha" ao invés de chamá-la pelo nome, dizer o que ela não vai conseguir fazer, são exemplos de como se infantiliza uma mulher. Mulheres infantilizadas têm medo, se sentem incapazes. Não seria mais honesto encorajar a mulher neste momento?]

O Julio foi fazer a papelada do internamento e eu fui pro Centro Obstétrico. Fomos direto pra sala de parto, que sinceramente deveria se chamar “sala de cirurgia” porque não é uma sala preparada para parto, absolutamente. É perfeita pra te operarem, não pra você parir.
A enfermeira me ofereceu analgesia, eu não quis. Pediu pra que eu deitasse que meu médico logo chegaria e saiu da sala. Não deitei, fiquei acocorada no chão, era a posição que me deixava mais confortável.

[A posição horizontal é a menos indicada para o parto normal, porque é contra a gravidade, além de aumentar muitíssimo a dor. O mais indicado é que a parturiente fique na posição que ela escolher. Só durante o trabalho de parto ela consegue saber como quer ficar. Ficar na posição que se sente mais confortável diminui drasticamente a chance de laceração.]

Entraram duas enfermeiras na sala conversando entre si, mexendo em agulhas, acessos, etc. Uma fala pra outra “eu trouxe o sorinho, será que ela vai querer, porque não quis nem analgesia…” Eu me meti na conversa dizendo que não queria. Elas saíram da sala.

[O "sorinho" é ocitocina sintética, usado para acelerar as contrações e fazer o trabalho de parto durar menos tempo. Quando se usa o sorinho a dor aumenta desumanamente, além de não ser indicado para quem tem uma cesárea prévia, já que faz o útero se contrair artificialmente, aumentando o risco de ruptura uterina devido a cicatriz da cesárea.]

Voltaram pedindo pra que eu deitasse na maca.

“Moça, deite na maca, pela posição que você está o teu bebe está quase nascendo, é melhor você deitar”
“Eu não consigo deitar, prefiro ficar assim!”

Continuo ali no chão, acocorada e sozinha. Peço pra chamarem meu marido.

“Calma, ainda não é a hora, quando estiver nascendo ele vem”

A enfermeira insiste que eu preciso deitar na maca, eu me nego.

“Se você não deitar na maca teu bebê vai nascer e cair de cabeça no chão, você quer isso?”
“Se é só essa a ajuda que você pode me dar, eu dispenso… pode me deixar aqui sozinha que eu sei o que é melhor pra mim e pro meu filho”

[Tudo que eu precisava nessa hora era acolhimento, era incentivo, era alguém pra me falar que estava tudo bem e que tudo daria certo, não alguém me dizendo q meu filho cairia no chão. Fui muito grossa com a enfermeira nessa hora e não me arrependo.]

Ela sai da sala e eu fico sozinha de novo.

Entra o obstetra plantonista

“Eu preciso que você deite na maca porque não vai dar tempo do teu medico chegar então eu vou fazer o teu parto”
“Eu já falei que não vou deitar e eu não preciso que você faça o meu parto, eu sei o que fazer e farei sozinha”

[Essa frase "fulano fez meu parto" sempre me incomodou. Em condições normais o médico não faz nada, quem faz todo o trabalho é a mulher.]

Ele não ficou muito contente, mas não insistiu. Sentou e ficou só me olhando. Tive outra contração forte e gritei algo como “aaiii, me ajude”… o obstetra falou “ué, você não disse que sabia o que fazer e faria sozinha?”

Passada a dor, me vi sozinha novamente na sala.

Comecei a sentir uma vontade imensa de empurrar, de fazer força. Incontrolável. A dor sumiu totalmente, só sentia uma pressão no assoalho pélvico e minha barriga baixou assustadoramente. Saiu o tampão mucoso, bem maior e mais cheio de sangue do que eu imaginava. A cada contração eu empurrava e sentia a cabecinha coroando e voltando.

“Vai nascer, chama meu marido!!!”

Entraram o médico e as enfermeiras novamente.

“Moça, é sério, você não pode ter esse bebê aí no chão, eu vou te ajudar a subir na maca, não precisa deitar se não quiser, mas suba na maca!”

“ok, mas eu não vou deitar…”

Nessa hora lembro que olhei bem pra cara do médico e disse:

“Doutor, eu não quero episio, de jeito nenhum!”
“Tudo bem, mas suba na maca”

[Episiotomia é o corte feito no períneo para supostamente facilitar a saída do bebê. As evidências cientificas mostram que nenhuma episio é necessária, porque não ajuda em nada, não previne laceração já que é pior que uma laceração. Episiotomia é crueldade, é mutilação genital. Porém, a maioria dos médicos a faz sem ao menos consultar a parturiente.]

Subi na maca e fiquei de cócoras. Pedi pra chamarem o Julio. Me deixaram sozinha de novo.

Eu sentia a cabecinha coroando e voltando. O Julio chegou e se assustou por eu estar sozinha, não entendeu nada. Ele esperava algo parecido com a cesárea, esperava que ia assistir e não participar. Eu não consegui explicar nada do que eu tinha passado, só disse pra ele ficar ali comigo, e ele ficou. Na próxima contração o bebê coroou.

[É impressionante o controle que a gente tem do períneo, coisa que eu nem sonhava. Eu estava “segurando” o bebê já há algumas contrações, quando me vi segura, relaxei o períneo para que ele coroasse. Se eu estivesse anestesiada não teria esse controle] 

Pedi pro Julio olhar:

“Julio, olhe lá, saiu a cabecinha…”
“Meu Deus, saiu a cabeça, o que que eu faço, vou chamar alguém!!!”
“Não, calma, tá tudo certo, é assim mesmo, não chama ninguém. Pega aquele pano e se prepara porque na próxima contração vai sair o bebê inteirinho e você precisa segurar.”
“Mas não é melhor eu chamar o médico, e se acontecer alguma coisa?”
“A única coisa q vai acontecer agora é esse bebê nascer! Se prepara que é agoraaa…”

Veio a contração, sem dor nenhuma, só a vontade de empurrar. Senti o Otto saindo inteirinho de dentro de mim. Um alivio indescritível. Uma sensação de poder, de domínio do meu corpo, coisa que eu jamais havia sentido antes. Eu só pensava que se eu fiz isso, eu faço qualquer coisa!

O Julio pegou o Otto, enrolou no pano e me deu. Encolhidinho, chorou forte, alto. Eu estava em êxtase.



“Agora eu vou chamar um médico, Vanessa…”
“HAHAHA, agora você pode chamar quem você quiser!”

Entraram todos, obstetra plantonista, enfermeiras, pediatra…

Pedi pra ficar com o bebê por um tempo, eu queria dar o peito antes de levarem ele para os exames. O pediatra concordou. Sugeriu que eu tirasse a roupa e colocasse o bebê em contato com a minha pele e assim tentasse amamentar. Fiquei com ele um bom tempo assim.

[As evidências mostram que amamentar o bebê na primeira hora de vida, assim como colocá-lo diretamente na pele, favorece a descida do leite e a criação de vínculo entre a mãe e o bebê.]

 O obstetra disse que precisava tracionar a minha placenta, que ainda não havia “nascido”. Eu neguei.

“Eu queria esperar ela sair naturalmente, com as contrações”
“É que as vezes ela não sai sozinha e é preciso dar uma puxada”
“Vamos esperar pelo menos mais uma contração então”
“Mas não tem porque esperar…”

Eu estava cansada demais pra continuar aquela discussão, por sorte o pediatra que estava na sala ouviu e interferiu:

“Doutor, faz o que ela tá pedindo, não custa…”

A contra gosto ele esperou e a placenta saiu inteira na primeira contração.

Não satisfeito, ele queria cortar o cordão desesperadamente. Eu pedi pra esperar parar de pulsar. Ele argumentou. O pediatra novamente interferiu.

“Dá pra esperar sim, vamos esperar”

[Enquanto o cordão está pulsando, o sangue da placenta está indo para o bebê, o que previne a anemia no recém nascido.]

Depois de cortado o cordão, fiquei ainda alguns minutos com o Otto nos braços, amamentando.

Pouco antes de levarem ele para pesar e examinar, chegou o meu obstetra, esbaforido e se desculpando. Não havia do que se desculpar, nem nos meus melhores sonhos eu imaginaria que meu trabalho de parto fosse ser tão rápido. Ele demorou cerca de meia hora, mas já era tarde. Ele me examinou para ver se não havia laceração. Nada. Uma pequena escoriação, mas que não seria preciso nenhum ponto. O Julio foi com o pediatra acompanhar os procedimentos no bebê e depois nos encontramos no quarto.

...........

O Otto nasceu às 6h da manhã do dia 30/01/14, com 3750g e 52cm, apgar 10 e 10, de 41 semanas e 5 dias de gestação, depois de 4 horas de trabalho de parto sem nenhuma intervenção médica, aparado pelo pai em um parto natural hospitalar desassistido.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Puerpério: bem mais que emagrecer, sangrar e amamentar


Por favor, pare de ler esse texto se você ainda não é mãe. Provavelmente você não será capaz de compreender o que uma mãe sente no período pós-parto e eu não preciso do seu julgamento.

Não se trata de estar ou não feliz. Não tem a ver com felicidade, absolutamente. O puerpério, que começa com nascimento do bebê e não tem prazo para acabar, é um período de sombras. Meu corpo que tenta se recuperar do parto, que por mais natural que tenha sido, sempre deixa marcas físicas. Meu útero que sangra incessantemente. O bebê que mama na mesma intensidade em que eu emagreço. E eu tentando me encontrar nessa nova rotina, na função de mãe de dois. Aprendendo a ser mãe de um segundo filho recém-nascido, um serzinho que exige dedicação exclusiva em um momento em que eu não posso me dedicar exclusivamente a alguém sem me sentir culpada por estar negligenciando o mais velho.

Bom, até aqui, você que não é mãe e optou por continuar lendo, ainda consegue entender que pode não ser um período fácil, não é? Perder sangue, emagrecer e amamentar o tempo todo, além de ter várias noites mal dormidas pode ser bem desagradável, certo? Certo. Mas não se trata exatamente desse tipo de problema físico. E é a partir daqui que mães e não mães se dividem em dois grupos.  

O puerpério é morte. Morte daquela que eu fui, morte daquela vida que eu tinha. Tudo novo, de novo. Aquela Vanessa está morta, mas ninguém vai perceber, por isso ninguém vai chorar por essa morte, somente eu. O puerpério é solidão. É se sentir absolutamente sozinha mesmo cercada de pessoas. O puerpério é perder a identidade. É não se identificar mais com aquela gestante ansiosa pelo parto, mas também não conseguir ainda se enxergar como mãe de dois filhos. Estar no puerpério é passar dias com um choro entalado na garganta e não conseguir encontrar um motivo digno para chorar. É não ter coragem de compartilhar sua solitária dor com alguém por medo de ser incompreendida. Porque você sabe que será. Afinal, você teve uma gestação tranquila, teve o parto que queria, tem um filho perfeito, um marido companheiro, formou uma família linda. Não tem direito de estar triste. E mesmo que você encontre uma alma que vibre na mesma sintonia e se sinta segura para falar, você não saberá o que falar. Não há um motivo para o choro, não nesse plano, não um motivo palpável, claro, que possa ser definido racionalmente.

Esse é meu segundo puerpério, e como toda segunda experiência, esta sendo mais leve. Já conheço bem o gosto amargo dos sentimentos que me judiaram da primeira vez. Não posso dizer que somos amigos, eles ainda são capazes de me sufocar, mas o fato de saber que eles existem dentro de mim facilita uma convivência sem tanta resistência. E talvez essa seja a palavra chave, ao menos pra mim: não resistir. Não tento mais vencê-lo ou ignorá-lo, me entreguei e vivo esse momento por inteiro, por mais difícil que possa parecer. É uma fase única de contato com as minhas mais profundas sombras e eu não quero deixar isso passar em vão.  Assim como eu escolhi um parto sem nenhum tipo de anestesia porque eu queria sentir tudo, sentir meu corpo, me autoconhecer, novamente eu escolho viver essa experiência sem filtros, sem anestésicos, sem fugas. Eu quero viver intensamente este puerpério e não somente sobreviver a ele.

“Há a velha eu partindo e a nova eu habituando-se a si mesma. E há uma forte amizade entre ambas. Muiticoexisto coesa. Há entre a velha e a nova uma gratidão enorme que amansa medos. Uma consciência que sorri para tudo o que fui. Consciência que flui em ritmo de autosororidade. A nova gentilmente aguarda o momento em que a velha se sinta pronta para ir, sem despejos. A velha sente que a nova é bem-vinda. Elas se abraçam, conectadas e belas como o brilho de uma verdade sentida e vivida com intensa profundidade." Natacha Orestes

sábado, 25 de janeiro de 2014

Carta de uma mãe para o seu primogênito



Tales,

Em alguns dias você deixará de ser filho único e se tornará irmão mais velho, um posto que você vai ocupar pelo resto da vida. Durante pouco mais de dois anos fomos só nos três, eu, você e seu pai. Nesse período aprendi a ser mãe por tentativa e erro e você foi a cobaia dessa experiência. Sou feliz pela pessoa que me transformei por meio de você e te serei grata por isso eternamente.

Logo vamos trazer pra casa um bebê com quem você precisará dividir minha atenção. Durante algum tempo ele não vai se mostrar muito interessado em você, mas eu garanto que isso vai mudar e você vai ganhar um amigo em potencial.

Eu sei que só o laço de sangue não é uma garantia de que vocês vão se dar bem, mas, acredite, isso não é o mais importante. Tendo um irmão você terá alguém com quem dividir todas as alegrias e as tristezas de ter nascido nessa família. Alguém com quem dividir todas as pesadas projeções que os pais fazem para a vida dos filhos, mesmo sem querer. Alguém para ajudar a guardar as lembranças da infância que vocês viverão juntos. Alguém com quem dividir a inevitável dor que vocês sentirão quando seu pai e eu não estivermos mais com vocês.

Talvez eu nunca consiga retribuir toda a riqueza que você me trouxe ao me permitir ser tua mãe, mas nesse momento a melhor coisa que posso fazer por você, meu filho, é ter outro filho.

Um beijo,

Vanessa

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Como passar de uma figura angelical para uma bomba relógio em um dia

Hoje, 40 semanas e 6 dias da minha segunda gestação. Fisicamente, me sinto enorme, mas ainda assim bem disposta. Psicologicamente, gostaria de estar mais forte.

Ter um final de gestação digno era uma coisa que eu queria muito, já que na minha gestação anterior eu pulei essa parte. Saí de casa para uma consulta de rotina com 37 semanas e voltei dois dias depois com um filho no colo. Não tive tempo de ficar ansiosa, de ficar inchada, de receber ligações diárias de gente querendo saber se já nasceu. Nada do que pra maioria é insuportável consegue ser nem desagradável pra mim nesse momento. Eu queria muito viver isso.

Mas parece que a 40ª semana é uma data cabalística em que você deixa de ser uma figura angelical e vira uma bomba relógio. Por mais que a gente saiba que gestações humanas podem ir ate 42 semanas, precisamos ficar entoando internamente o mantra "cada dia a mais é um a menos". É fácil se perder nessa hora, confesso. Especialmente se você não estiver cercada de pessoas que acreditam em você e no poder do seu corpo. Alem, obviamente, de estar sendo acompanhada por um obstetra verdadeiramente humanizado e que acredite que o parto é um evento fisiológico e não cirúrgico. O que tem me ajudado muito nessa fase tem sido ouvir palavras de conforto de quem já teve experiências boas de parto. Porque é muito fácil pirar e agendar uma cesárea. Mais do que nunca, não julgo quem o faça.



Logo eu que sempre fui daquelas que, pra se sentir segura, precisava estar no controle de tudo. E agora me vejo aqui, totalmente entregue ao acaso, a um tempo que não é meu, que eu não posso controlar. Que eu não quero controlar.

Eu tento administrar a ansiedade pensando: bebês nascem! Sim, nascem. E, em condições normais como as que eu me encontro, se ninguém intervir, eles nascem naturalmente. É só uma questão de tempo. E de conseguir se convencer disso.


Hoje tive outra consulta do pré-natal. Nenhuma novidade, tudo sob controle. E meu obstetra continua me encorajando a esperar, somente esperar. "Confie no seu corpo, não queira apressa-lo", diz ele ao me ver ansiosa. E eu sigo confiando.